Quais as contribuições teóricas de E. P. Thompson para o entendimento da formação da classe operária?
Perspectivas teóricas e conceituais sobre classes sociais e sociedade civil
Tema 3 A formação da classe operária
Com o entendimento acerca dos conceitos de sociedade civil e classe social, partiremos para a ramificação do nosso debate. Dando sequência ao nosso estudo, nossas atenções estarão voltadas para o tema formação da classe operária. Para essa abordagem, recorreremos à grande referência no assunto: o historiador inglês Edward Palmer Thompson (1924-1993).
Afinal, quem foi Thompson e por qual motivo o consideramos uma grande referência?

Fonte: Wikimedia (2022).
Trata-se de um historiador inglês, nascido em Oxford, no ano de 1924, com uma trajetória de atuação bastante plural, considerando-se que foi reconhecido em seu ativismo político, por ter sido um dos idealizadores da New Left (Nova Esquerda). Ficou conhecido como professor universitário e na educação para adultos de origem trabalhadora.
O autor publicou diversos livros que ganharam traduções no mundo todo, inclusive vários trabalhos seus foram traduzidos para o português do Brasil. Das publicações nacionais, destacamos a seguir os mais relevantes na comunidade acadêmica brasileira:
A miséria da teoria, Costumes em Comum. | Senhores e caçadores. | A Formação da Classe Operária inglesa. |
A obra A formação da Classe Operária Inglesa, como o título sugere, é um trabalho fundamental para a discussão desta aula. Por outro lado, é bom salientar que tal temática não é exclusiva desse livro, pois vai perpassar diversos escritos do Thompson, em especial A miséria da teoria e Costumes em comum.
Para aprofundar os seus conhecimentos acerca deste tema, acesse: Por que Thompson?
Como podemos perceber, era significativa a dedicação do autor inglês à problemática da formação da classe operária. Por outro lado, sabemos que boa receptividade à abordagem thompsoniana está além da extensão de suas pesquisas, visto que, em grande medida, foi a originalidade de sua metodologia que lhe valeu destaque historiográfico.
Sabendo disso, compartilhamos a seguinte indagação:
O que o historiador inglês E. P. Thompson produziu de tão novo para o debate?
Como resposta a essa pergunta, observe o trecho a seguir, extraído do artigo Teoria de Classe, escrito por Ronald Chilcote, comentador dos estudos de Thompson:
Thompson (1968) argumenta [...] que a história pode ser resgatada por “baixo”, pelo enfoque da consciência de classe, da criatividade e da iniciativa da massa. Examina aspectos subjetivos da classe e, nesse processo, volta-se contra interpretações estruturais e deformações teóricas e práticas que percorrem a história. Ellen Meiksins Wood [...] acredita que Thompson ressuscitou o conceito de classe e usou contra cientistas sociais burgueses, que negam seu uso como relação e processo.
(CHILCOTE, 1995, p. 88)
Ao lançar nos olhares e interpretações às pesquisas de Karl Marx e propor uma história vista de baixo, Thompson, no conjunto de sua obra, critica a produção de um marxismo vulgar, assim como coloca em questão as noções de infraestrutura e superestrutura do marxismo tradicional, propondo que a constituição da classe operária se dê em um processo histórico alicerçado em experiências sociais atravessadas por costumes e culturas.
Saiba mais
Infraestrutura e superestrutura
Na tradição marxista, foi-se difundindo que a sociedade poderia ser entendida a partir da relação entre infraestrutura e superestrutura, sendo:
- A infraestrutura é constituída pelas relações/tensões entre forças de produção (trabalhadores e trabalhadoras, meios de produção etc.).
- A superestrutura seria forjada no seio da sociedade, com o intuito de atenuar as lutas de classes, favorecendo os grupos dominantes. Nesse sentido, o Estado, a ideologia, meios de comunicação etc.).
Seu argumento em torno da importância da experiência social foi desenvolvido, principalmente, a partir do estudo dos ingleses nos séculos XVIII e XIX. Com isso, não foi uma grande referência acerca dessa temática somente, pois sua tese de que a classe operária se constituiu no “autofazer-se” ou, simplesmente, no “fazer-se, também influenciou muitos estudos em todo o mundo.
Para ilustrar esse princípio, apresentamos o seguinte trecho extraído do primeiro parágrafo de A Formação da Classe Operária inglesa:
A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se.
(THOMPSON, I, 1987, p. 9)
A citação apresentada concretiza a assertividade de sua defesa de que a classe operária se constitui na experiência e por historicidade.
Outro ponto importante para o autor é destacar que o singular “classe” é o mais adequado para denominar esse grupo. Veja, no trecho a seguir, sua defesa para essa afirmação.
[...] “Classes trabalhadoras” é um termo descritivo, tão esclarecedor quanto evasivo. Reúne vagamente um amontoado de fenômenos descontínuos. Ali estavam alfaiates e acolá artesãos, e juntos constituem classes trabalhadores. Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico.
Com este fragmento de texto começamos a entrar em contato com a singularidade da teoria thompsoniana em torno da noção de classe, exatamente naquela que conferimos nesta aula, a partir de Chilcote.
Agora, entenderemos o argumento central que evidencia os elementos da constatação de Thompson sobre a formação da classe operária.
Leia o trecho a seguir:
A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram — ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma.
(THOMPSON, I, 1987, 10)
Dessa maneira, mais do que produto direto do capitalismo e da industrialização, a classe operária se fez por meio de uma experiência determinada, a partir de uma consciência de classe diante dessa experiência. Justamente por reconhecer a consciência de classe como o modo como os sujeitos lidam com suas experiências a partir de costumes e culturas, é que essa consciência se dá historicamente e em variações a depender da época e lugar.
Por essa razão, Thompson rejeitava a ideia de alienação. Leia o trecho a seguir e entenda sua defesa para esta afirmação:
Existe atualmente uma tentação generalizada em se supor que a classe é uma coisa. Não era esse o significado em Marx, em seus escritos históricos, mas o erro deturpa muitos textos “marxistas” contemporâneos. “Ela”, a classe operária, é tomada como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase matematicamente – uma quantidade de homens que se encontra numa certa proporção com os meios de produção. Uma vez isso assumido, torna-se impossível deduzir a consciência de classe que “ela” deveria ter (mas raramente tem), se estivesse adequadamente consciente de sua própria posição e interesses reais. Há uma superestrutura cultural, por onde esse reconhecimento desponta sob formas ineficazes. Essas “defasagens” e distorções culturais constituem um incômodo, de modo que é mais fácil passar para alguma teoria substantiva: o partido, a seita ou o teórico que desvenda a consciência de classe, não como ela é, mas como deveria ser.
(THOMPSON, I, 1987, p. 12)
Como podemos verificar, Thompson critica as apropriações distorcidas acerca dos escritos históricos de Marx, em especial em torno da expectativa de qual consciência de classe a classe deveria ter. A impossibilidade da exigência de um tipo certo de consciência consiste no fato de que a classe se faz em relação e historicamente, ou seja, é na experiência com o outro e em dadas contingências sociais que os sujeitos reconhecem demandas em comum e vão se fazendo classe, vão constituindo uma consciência dessa demanda e força coletiva. Por isso, Thompson argumentou:
Se lembrarmos que a classe é uma relação, e não uma coisa, não podemos pensar dessa maneira. “Ela” não existe, nem para ter um interesse ou uma consciência ideal, nem para se estender como um paciente na mesa de operações de ajuste. Tampouco podemos inverter as questões, tal como fez uma autoridade no assunto [...]
[...] se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequando de mudanças sociais observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição.
No caso brasileiro, alguns estudos se valem da teoria de Thompson para pensar a relação dos trabalhadores com as políticas trabalhistas de Vargas, já que muitos acusam de alienados os trabalhadores e trabalhadoras que o elegeram na década de 1950, sem considerar a experiência social que os/as levou a tal decisão.
Feitas essas considerações, de modo geral, sobre noções thompsonianas em torno dos conceitos de experiência, classe operária e consciência de classe, convém mencionarmos que A Formação da Classe Operária inglesa foi lançado em 1963, quando Thompson tinha 39 anos. O livro impressionou a comunidade acadêmica com seus argumentos. Tal reconhecimento não era necessariamente esperado, considerando-se que se tratava de um livro voltado para a comunidade leitora em geral e não para o público acadêmico em específico.
No prefácio do livro, Thompson registra sua intenção, como podemos ver a seguir:
Este livro tem um título um tanto desajeitado, mas adequado ao seu propósito. Fazer-se, porque é um estudo sobre o processo ativo, que se deve tanto à ação humana como aos condicionantes.
(THOMPSON, I, 1987, p. 9)
Considerando o título original em inglês, The making of the English working class, faz mais sentido a classificação “título desajeitado”, tendo em vista que, na tradução para o português, “ajeitou-se” a denominação. Ainda assim, a escolha de se traduzir por formação perdeu a força com que a versão em inglês expressa a tão clara ideia do fazer-se no próprio título, por meio do “the making”.
Agora que aprendemos a respeito do grande impacto das produções de Thompson e de suas principais ideias, nos estudos das classes sociais, resta saber um pouco mais sobre a estrutura dessa obra com denominação quase homônima ao tema desta aula.
A Formação da Classe Operária inglesa foi organizada em três tomos, sendo eles:
- A Árvore da Liberdade.
- A Maldição de Adão.
- A Força dos Trabalhadores.
Cada uma dessas partes foi apresentada pelo próprio autor da seguinte maneira:
Na parte I, trato das tradições populares vigentes no século 18 que influenciaram a fundamental agitação jacobina dos anos de 1790. Na parte II, passo das influências subjetivas para as objetivas – as experiencias de grupos de trabalhadores durante a Revolução Industrial que me parecem de especial relevância. Tento também avaliar o caráter da nova disciplina industrial do trabalho e da posição, a esse respeito, da Igreja Metodista. Na Parte III, recolho a história do radicalismo plebeu, levando-a, através do luddismo, até a época heroica no final das Guerras Napoleônicas. Finalmente, discuto alguns aspectos da teoria política e da consciência de classe nos anos 1820 e 1830.
(THOMPSON, I, 1987, p. 12)
Para entendermos as razões que teriam levado Thompson a estabelecer esse recorte, ou seja, escolher esse grupo de sujeitos do final do século XVIII e começo do XIX, apresentamos o trecho de abertura da obra, que traz a seguinte afirmação:
Nos anos entre 1780 e 1832 os trabalhadores ingleses em sua maioria vieram a sentir uma identidade de interesses entre si, e contra seus dirigentes e empregadores. Essa classe dirigente estava, ela própria, muito dividida, e de fato só conseguiu maior coesão nesses mesmos anos porque certos antagonismos se dissolveram (ou se tornaram relativamente insignificantes) frente a uma classe operária insurgente. Portanto, a presença operária foi, em 1832, o fator mais significativo da vida política britânica.
(THOMPSON, I, 1987, p. 12)
Podemos notar que foi nas experiências vivenciadas no final do XVIII e começo do XIX que levaram o grupo de sujeitos, com seus costumes e culturas, a se fazerem a classe operária, ou seja, questão chave no desdobramento da teoria sobre o fazer-se classe.
Para finalizar, destacamos aqui a relevância que, embora seja um autor de impacto no campo historiográfico, não significa dizer que ele seja unanimidade. Ao contrário, segundo o já mencionado Chilcote, Thompson foi acusado de subjetivismo e voluntarismo por críticos como Perry Anderson (p. 88). Por outro lado, mesmo entre seus adeptos, pesquisadoras e pesquisadores em estudos contemporâneos têm buscado ampliar a abrangência das noções thompsonianas de formação da classe operária ao pensá-la à luz das questões identitárias ou de debates decoloniais.