A livre circulação de bens e riquezas em sociedade, ponto nevrálgico de nosso Direito privado e objetivo de realização de nosso ordenamento em sede de obrigações e contratos de qualquer ordem, nem sempre foi possível ou até mesmo admitida.
No mundo feudal, cujas relações se baseavam no imobilismo da estratificação estamental do organismo social e político, e onde as estruturas de poder dependiam, fundamentalmente, da garantia de manutenção desse imobilismo, a dinâmica necessária para as relações comerciais não era possível e, mais do que isso, não era mesmo desejada pelas elites.
Estamental
O Estamento constitui uma forma de estratificação social com camadas mais fechadas do que classes sociais, e mais abertas do que as castas, ou seja, possui maior mobilidade social do que no sistema de castas, e menor mobilidade social do que no sistema de classes sociais.
É um tipo de estratificação ainda presente em algumas sociedades.
Nessas sociedades, do presente ou do passado, o indivíduo desde o nascimento está obrigado a seguir um estilo de vida predeterminado, reconhecidas por lei e geralmente ligadas ao conceito de honra, embora exista alguma mobilidade social.
Assim, as atividades comerciais – antepassadas imediatas de nossas atuais relações empresariais – não eram bem-vistas socialmente, e ocupar-se do comércio não constituía ideal aspirado pelas classes sociais proeminentes, sendo mesmo usualmente considerada uma atividade exercida por indivíduos de mais baixa extração no corpo social.
A própria atividade lucrativa era algo destinado a pessoas que não comporiam, jamais, a aristocracia, integrada pelos nobres – cuja riqueza não se lastreava no comércio ou na circulação de riquezas, mas, pelo contrário, baseava-se na posse da terra e na percepção da riqueza advinda de sua exploração em sistema servil – e pela alta hierarquia clerical, que partilhava com a nobreza esse mecanismo de acumulação de riqueza e de manutenção do poder.
As castas representativas da sociedade feudal: a nobreza, o clero e os servos.Pirâmide Social da sociedade feudal – observa-se a mínima valorização das atividades mercantis.
Da origem de seus mecanismos de produção e acumulação de riqueza, poder e prestígio, bem se pode compreender a necessidade de imobilismo e de compartimentalização daquela sociedade, eminentemente baseada na posse fundiária, que ensejava a construção de uma sociedade de castas, estática, com atribuições, poderes e responsabilidades perfeitamente delimitadas (e que se dividia, grosso modo, em servos e senhores).
Dessa época remonta, apenas para contextualizarmos as evoluções do pensamento no curso do tempo, a proibição da usura – que não se constituía apenas em proibição simbólica, a ensejar a perdição da alma pela vida em pecado de seus praticantes, mas sim em delito criminal socialmente punível e integrante do ordenamento jurídico de então.
Usura
Usura, em seu sentido original, são juros excessivos cobrados por um empréstimo, em uma determinada quantia de dinheiro.
Na Idade Média, usura era utilizada como sinônimo de juro, e era uma prática proibida, pois se acreditava que dinheiro não poderia gerar dinheiro.
Naquela época, cobrança de juros era considerada uma forma de se explorar uma pessoa que estava passando por uma situação difícil, portanto todos os empréstimos financeiros deveriam ser realizados sem cobrança de nenhuma taxa.
Em nosso ordenamento jurídico, encontra-se vigente uma lei da usura, que limita a cobrança de juros.
Tal visão de mundo não sobreviveu a inúmeros eventos que ensejaram a paulatina mudança da realidade social, tais como, por exemplo:
Cruzadas
As Cruzadas, com a reabertura das rotas comerciais anteriormente proibidas à cristandade.
Protestantismo
O surgimento e a ascensão do Protestantismo, com sua ética própria, e, posteriormente, do Calvinismo.
Ligas
A constituição de Ligas de artesãos e, em seguida, de comerciantes, como a Liga Hanseática e as Companhias das Índias Ocidentais e Orientais (que chegaram a deter tamanho poder que declararam guerra como se fossem Estados).
Bancos
A formação dos primeiros Bancos.
Escola de Sagres
A constituição da Escola de Sagres pela inovadora monarquia portuguesa
Mercantilismo
E, finalmente, no que hoje denominamos mercantilismo, figurativamente representado pelas grandes navegações, esse extraordinário empreendimento humano que mudou e modelou o curso da história.
Na medida em que o exercício da atividade comercial, empresarial, proporcionava crescentes riquezas e prestígio àqueles que a exerciam, impunham-se alterações sociais no sentido não apenas de sua valorização, mas, também e principalmente, no da facilitação de suas atividades, o que resultou na gradativa ruptura das barreiras comerciais, na unificação dos sistemas de pesos e medidas e na adoção da universalidade de um meio circulante com função de valorímetro que fosse reconhecido e aceito nos diversos locais onde essa atividade era praticada, e, portanto, pressupunha certa padronização antes inimaginável.
A Rota da Seda. Representação das intrincadas rotas comerciais; sua vastidão permite compreender a necessidade da quebra das barreiras e de universalização dos usos e costumes comerciais.
Com efeito, essas novas realidades impunham a formação de inéditas estruturas sociais e, no esteio de sua constituição, trouxeram novos padrões éticos, estéticos e, consequentemente, sistemas e ordenamentos jurídicos adequados à garantia de funcionalidade dessas novas relações, estabelecendo-se normas destinadas a legitimar e a proteger o maior dinamismo das classes sociais, a maior permeabilidade destas às influências e acessos das demais classes ou dos indivíduos que as integram e as relações comerciais então ascendentes.
Em planos nacionais
Nossas relações com o mundo europeu – e o início de nossa história colonial – devem seu início à alteração das estruturas de pensamento econômico-político (e consequentemente jurídico), que desembocaram no mercantilismo, do qual a expedição destinada à nossa descoberta foi significativo antecedente: um empreendimento multinacional, concebido na multiétnica e multicultural Escola de Sagres, financiado por investidores representativos do capital internacional e realizado por empreendedores dotados de evidente espírito de aventura.
Mesmo que, posteriormente, as relações coloniais tenham criado estruturas que não contemplavam a livre circulação das riquezas em sociedade, já que às Colônias não tocava autonomia para regulamentar o comércio e as demais atividades produtivas em seu território, cujo ordenamento jurídico dependia das determinações das Metrópoles, podemos afirmar que o interesse na descoberta e instituição de novas rotas comerciais, bem como de novos mercados e de novas áreas de exploração econômica, originaram essa interseção com o mundo europeu.
Nosso sistema jurídico formal, então, em um primeiro momento, foi importado da Metrópole. As Ordenações do Reino vigeram em nosso território (ao menos formalmente) desde o descobrimento até a outorga de nossa primeira Constituição, em 1824, e já no curso do Primeiro Império; todavia, o primeiro de nossos Códigos foi, sintomaticamente, o Código Comercial, de 1850 – apenas para contextualizar, promulgado mais de 50 anos antes de nosso primeiro Código Civil, de 1916.
Desde 1850 e até 2002, foi o Código Comercial o Diploma Legal norteador de toda a atividade empresarial, então inserida no conceito de atividade comercial (que é uma categoria necessariamente mais restrita), realidade alterada apenas com a promulgação do atual Código Civil, que passou a dispor sobre o denominado Direito de Empresa, incorporando a atividade empresarial à nossa lei civil.
Além do Código Civil, a matéria é regida, atualmente, pela lei de Falências, de 2005, pela lei das microempresas e pela lei das sociedades anônimas, apenas para contextualizar a disposição do sistema jurídico construído sobre a matéria.
Ato de Comércio e Atividade Empresarial
Sob a égide do Código Comercial, a atividade empresarial centrava-se na prática do comércio, da mercancia, e era representada pela hipótese da prática do ato de comércio, que era aquele que dava a quem o praticasse a condição de comerciante, devendo ser resolvido pelas normas próprias do Direito Comercial.
Mercancia
Definia-se mercancia como sendo a profissão do comércio, a mercatura. Já em 1850, determinava o Regulamento 737 serem as seguintes as atividades englobadas por essa denominação: § 1º A compra e venda ou troca de efeitos móveis ou semoventes para os vender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso; § 2º As operações de câmbio, banco ou corretagem; § 3º As empresas de fábricas, de comissões, de depósito, de expedição, de consignação e transporte de mercadorias, de espetáculos públicos; § 4º Os seguros, fretamentos, riscos e quaisquer contratos relativos ao comércio marítimo; § 5º A armação e expedição de navios.
O ato de comércio se estabelecia subjetiva ou objetivamente, segundo fosse considerada a sua identificação pela pessoa que o praticava ou pelo próprio ato praticado (determinando a teoria da consideração subjetiva o estabelecimento de uma relação comercial quando decorrente de um ato praticado por comerciante, e a objetiva, o estabelecimento dessa natureza de relação quando praticado um ato de comércio).
A definição de ato de comércio, assim, se prendia mais à identificação da prática de uma atividade que não pudesse ser inserida naquelas consideradas de esfera civil, ou seja, definia comércio basicamente pela sua distinção em face de atos de outra natureza, ou de natureza não necessariamente lucrativa, que não envolvessem acumulação ou transferência de capital.
Tal definição evoluiu na medida das modificações percebidas em nossa sociedade, de tal sorte que não mais nos atemos à definição circunscrita aos atos comerciais restritivamente para a consideração da atividade negocial, que, hoje, consideramos como sendo aquela do empresário, como tal considerando-se quem exerce atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, excluídos aqueles que exercem profissão intelectual, de natureza científica ou artística e literária, ainda com o concurso de auxiliares e colaboradores, salvo se o próprio exercício da profissão constituir elemento da empresa.
Não sem razão, sobre a atividade empresarial dispõe nosso Código Civil, em seu artigo 966, ser “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, estabelecendo, portanto, os critérios, os requisitos ou elementos para a sua configuração, quais sejam: a organização da atividade sob finalidade econômica ou visando a circulação de riquezas, fundada no ato de produção ou circulação, em sociedade, de bens da vida economicamente apreciáveis ou da circulação, pela prestação ou pelo agenciamento, de serviços.
Para efeito da interpretação da norma ora sob análise, entende-se por qualquer dos objetos suscetíveis de apreciação econômica, aí incluídas as atividades de prestação de serviços, dado que necessariamente vai integrar a sua realização um conteúdo de valor economicamente apreciável, sem o qual não seriam admitidas empresarialmente.
Circulação se refere à mudança de titularidade, de propriedade, de posse ou de uso desses bens economicamente apreciáveis, e não à própria atividade física, de deslocamento corpóreo.
Portanto, a definição de bem, para efeito de nosso estudo, se prende a qualquer objeto que possua suficiente conteúdo econômico para que as partes o façam circular (ou mudar de titularidade) no corpo social. Será um bem economicamente apreciável a cessão de uma marca (que é uma propriedade imaterial, intelectual) entre dois indivíduos (cedente e adquirente), e a sua circulação configurar-se-á pela transferência de sua propriedade, pelo ato de fazer com que aquela propriedade mude de titular, passe do cedente ao adquirente (e não pela dimensão de movimento, de deslocamento espacial ou físico que o vocábulo possua).
O parágrafo único do mesmo dispositivo determina quais atividades não serão consideradas empresariais, quais sejam: aquelas de caráter “intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”.
Essa determinação tem por finalidade excluir das atividades empresariais aquelas praticadas eventualmente (ou seja, sem a constância e reiteração de conduta que definirá a figura do empresário), bem como aquelas praticadas em funções desprovidas de conteúdo empresarial, como o são as de natureza intelectual ou científica, por exemplo.
Importante
Para efeito da configuração da atividade empresarial não basta, portanto, a remuneração pela prática do ato – já que uma atividade intelectual ou científica pode gerar remuneração (por exemplo, nas hipóteses de bolsas de pesquisa, de patrocínios, de remuneração por direitos autorais), sem que isso corresponda ao exercício de atividade empresarial.
Importante
Já vimos, anteriormente, que apenas poderão ser objeto dos direitos de propriedade e dos direitos obrigacionais os bens, ou seja, aquelas coisas dotadas de conteúdo economicamente apreciável, ao menos pelas partes contratantes; a existência de conteúdo economicamente apreciável não é o que determinará a natureza empresarial da atividade. São diversas as naturezas das relações civis e empresariais, de tal forma que determinado indivíduo pode vender seu carro sem que por isso se torne necessariamente um empresário (porque não exerce essa modalidade de negócio como atividade econômica); todavia, aquele outro que se dedique à compra e venda de veículos, embora nenhum deles seja seu, exercerá atividade empresarial.
Vídeo da Unidade
Para aprofundar seu conhecimento sobre a natureza e constituição das empresas, assista ao vídeo da unidade.
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Atividade
Partindo do pressuposto de que se consideram como atividades empresariais aquelas cujo objeto remonte a “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, podemos afirmar que será atividade empresarial:
aA tradução de um romance escrito originalmente em outro idioma.
bA elaboração de uma peça teatral por seu autor em forma escrita.
cA exploração econômica do teatro em que se apresentam orquestras.
dA atividade do pianista remunerado por suas apresentações públicas.
eA confecção de uma aquarela sobre determinado tema para um museu.