De que forma a arte pode ser entendida nos primeiros períodos da existência humana na Terra? Existe algum ponto de contato entre a chamada arte primitiva e a produzida pelos egípcios?
Ainda hoje é difícil e complexo explicar o que é arte, pois esse é um conceito que depende muito do ambiente, do meio e da cultura de cada povo. Sabemos do seu caráter de expressão cultural, de registro por meio de pinturas, desenhos e esculturas dos elementos culturais, que cada povo entende que deva ser registrado ou marcado, de alguma forma, para a posteridade. O que se pode dizer, portanto, é que o conceito de arte é histórico e contextual, variando conforme as sociedades em que se inserem e as expressões/finalidades que artistas buscavam com suas peças.
A ideia que temos atualmente sobre a arte como algo belo, que nos impressiona esteticamente e que, por isso, deva receber um lugar de honra em nossas casas ou em nossa sociedade, é algo relativamente novo. Durante a maior parte da história da humanidade, o que os artistas produziam eram objetos concretos e com finalidade prática específica. Aquilo que entendemos nos dias atuais como sendo obras de arte produzidas nos tempos passados, regra geral, eram peças criadas para se adequarem a um fim específico. Seu caráter pragmático era o principal.
Se aceitarmos essa proposição, fica mais fácil empreender a viagem que estamos iniciando neste momento. Uma viagem em direção às produções artísticas do passado, dirigidas para o campo das chamadas artes visuais e da arquitetura.
Até pouco tempo atrás, entendia-se que a história iniciava-se a partir do momento no qual havia a escrita, já que ela forneceria os dados necessários para se comprovar a veracidade dos fatos. Antes disso, era a pré-história. Temos aí um problema para a história da arte. As primeiras pinturas e esculturas, de que temos conhecimento, foram produzidas muito tempo antes de a escrita surgir. Como saber, então, a intenção com que essas pinturas e esculturas foram produzidas? Se não existe registro escrito, como conhecer esses artistas e suas necessidades?
O século XX nos ensinou que o diálogo entre as diversas áreas do conhecimento poderia ajudar a suprir as lacunas que os registros oficiais e tradicionais haviam deixado. E a antropologia e a arqueologia mostraram-se amigas íntimas da história da arte. Alguns antropólogos, ao estudarem os povos que ainda hoje encontram-se em estágios de desenvolvimento humano – é importante ressaltarmos aqui que a ideia de estágios de desenvolvimento não depreende uma ‘evolução natural da cultura humana’ e sim um processo de desenvolvimento das expressividades – social e cultural, ou seja, próximos àqueles nos quais encontrávamo-nos no início da história da humanidade, descobriram algumas relações interessantes em torno da produção artística. Esses povos, chamados primitivos, mostraram aos antropólogos o quanto a magia ou a religiosidade e a crença no poder das imagens norteavam suas práticas. Seguindo esses caminhos, os historiadores da arte puderam levantar hipóteses e possibilidades de leitura daquilo que foi produzido nesse passado remoto da história da humanidade.
É com o auxílio desses estudos de antropologia, em torno desses povos primitivos, que iniciaremos nossa jornada pela pré-história da arte.
Arte pré-histórica, arte primitiva
Em algumas cavernas da França (Lascaux) e da Espanha (Altamira) foram encontradas algumas das mais antigas pinturas que se tem notícia. Por encontrarem-se nos tetos e nas paredes de cavernas, elas são chamadas de pinturas rupestres. As figuras 1 e 2 são de animais pintados nas cavernas de Lascaux, na França. As duas trazem cenas semelhantes, sendo ambas imagens de veados, cavalos e bois, pintados com tinta preta e vermelha. Não existe uma ordenação lógica na sua disposição sobre a parede. Ao contrário, elas parecem estar amontoadas, sem a preocupação de que cada imagem pudesse ser observada isoladamente, ou de outra forma, ou seja, sem a preocupação de que cada uma tivesse o seu espaço de observação.
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Figura 1 e 2 – Animais pintados na caverna de Lascaux, França.
Os estudos dos antropólogos junto aos povos primitivos chamou a atenção para um fator que ainda hoje é de extrema importância, inclusive para os chamados povos modernos. Esse fator é a crença no poder das imagens. Em meio a toda tecnologia, ao conforto e à segurança com que vivemos, ainda temos dificuldades em danificar as imagens de pessoas que nos são caras e importantes. Quando registramos as imagens dos nossos pais, filhos e parentes, lidamos com elas dotando-as de uma importância que beira o fervor religioso.
Partindo dos estudos apresentados por esses antropólogos, os historiadores da arte desenvolveram a hipótese da finalidade mágica dessas pinturas. Como algumas delas apresentam pequenas fissuras ou marcas de golpes sofridos, acredita-se que os caçadores do paleolítico fizessem essas pinturas com a intenção “mágica” de capturar, previamente, os animais que seriam alvos das caçadas nas quais participariam os homens da tribo. Algumas delas trazem inclusive nos desenhos a representação dos órgãos vitais dos animais e desenhos de flechas ou arpões golpeando-os nesses lugares. A própria disposição dessas pinturas, amontoadas em um mesmo canto, viria confirmar essa hipótese, já que elas não eram feitas para serem admiradas e observadas. Afinal de contas, estavam localizadas em cavernas específicas, sem iluminação para a contemplação. Era como se aquelas cavernas fossem os lugares mais propícios para que a “magia” se concretizasse.
A segunda hipótese para a existência dessas pinturas baseia-se em estudos feitos a partir de pinturas murais a céu aberto. As existentes no Brasil, no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, situam-se entre elas. Algumas trazem cenas que lembram festividades rituais, com pessoas vestindo fantasias e dançando em círculo (figura 3). Nesses casos, acredita-se que elas tinham uma finalidade pedagógica, na qual a vida, a cultura e os rituais da tribo eram ensinados aos mais jovens, como em uma sala de aula.
Poucas esculturas restaram desse período. Na Europa, foram encontrados alguns exemplares que receberam a denominação de Vênus, que são pequenas estatuetas de aproximadamente 10 a 15 cm, representando mulheres com seios fartos, quadris largos e ventre avantajado. A mais famosa é a Vênus de Willendorf (Áustria) (figura 4 — em primeiro plano ao centro). Como algumas dessas imagens foram encontradas junto aos fósseis de mulheres grávidas, acredita-se que elas eram usadas como pequenos talismãs, símbolos de fertilidade, para ajudarem, talvez, na hora do parto.
Figura 3 – Pintura parietal no Parque Nacional da Serra da Capivara — Piauí, Brasil.
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Figura 4 – Vênus de Willendorf, no Museu de História Natural de Viena. Cerca de 29.000 a.C.
Primeiras construções
As primeiras construções feitas para habitação no período neolítico eram, ao que tudo indica, feitas de madeira e cobertas com pele de animais. Por isso, não sobraram exemplares significativos para nossa análise e conhecimento. No entanto, em diversas regiões, foram encontradas algumas construções em pedra.
Entendemos aqui como as construções, as disposições sofreram intervenção humana. Ou seja, as pedras que foram dispostas em uma posição que não corresponde à sua colocação original e que se presta a alguma atividade humana.
As primeiras construções de que temos notícias são divididas em três categorias:
Menires – São monumentos megalíticos, pré-históricos e, geralmente, de dimensão elevada. Não se sabe sua finalidade, porém acredita-se que possam ter relação com os cultos de fertilidade da terra, de fins religiosos ou de demarcação do território (figura 5).
Dólmens – São monumentos funerários, megalíticos e pré-históricos, que marcam a entrada de túmulos, geralmente, coletivos (figura 6).
Cromlechs – São monumentos formados por menires e dólmens dispostos em círculo. Acredita-se que tenham servido como templos primitivos e abrigado túmulos. O mais famoso deles é o de Stonehenge, na Inglaterra (figura 7).
Figura 5 – Menir em Évora, Portugal.
Figura 6 – Dólmen em Burren, Irlanda.
Figura 7 – Cromlech de Stonehenge, Inglaterra.
Aprofunde seu conhecimento, lendo a indicação a seguir:
PEREIRA, T.; LESSA, S. N. Um bestiário pré-histórico? A pré-história através das pinturas rupestres. In: Revista de História da Arte e Arqueologia. Campinas: Unicamp, n. 21. Acesso em: 30 jun. 2017.
Ampliando o foco
Sobre a arte pré-histórica e primitiva, ver:
GALVES, M. C. P.; PINHEIRO, A. C. F.; CRIVELARO, M. História da arte e do design: princípios, estilos e manifestações culturais. São Paulo: Érica, 2014, p. 13-31. Disponível na Minha Biblioteca.
Arte egípcia
A civilização egípcia é uma das mais avançadas da Antiguidade em termos de complexidade organizacional. É o primeiro estado-nação de que temos notícia e sua estrutura política baseia-se em um modelo teocrático. Para entender a arte egípcia, é fundamental compreender a cultura desse povo.
Os egípcios entendiam o faraó — seu governante — como um deus vivendo entre eles, responsável pela manutenção da vida e da ordem. Por esse motivo, no Egito Antigo, era considerado o melhor artista aquele que conseguia fazer uma obra exatamente da mesma forma como ela era feita dois ou três mil anos antes. E essa produção artística destinava-se, sobretudo, a garantir a sobrevivência do faraó junto aos outros deuses após sua morte. Percebam, portanto, a importância da continuidade e da arte como elemento de ligação entre o presente e o passado, além de sua funcionalidade fundamental naquela sociedade.
Quando um faraó subia ao trono do Egito, ele já começava a construção da sua “morada eterna”, ou seja, de seu túmulo ou pirâmide. Os desenhos encontrados nas paredes das pirâmides destinavam-se a contar os episódios da vida do morto. A figura 8 mostra a rainha Nefertari, esposa de Ramsés II, fazendo oferendas à deusa Ísis. O que chama a atenção nas pinturas egípcias é o rigor formal. Eles adotavam a lei da frontalidade e as figuras também eram dispostas de forma a mostrar a hierarquia na qual inseriam-se, ou seja, as figuras mais importantes na sociedade eram desenhadas e/ou representadas maiores do que as outras (figura 9). A convenção adotada definia que o artista deveria desenhar tudo o que ele sabia que existia no modelo e da forma mais clara e completa possível, de modo a garantir que a imagem retratada conseguisse manter as funções que se esperavam dela.
A lei da frontalidade regia toda a representação da pintura egípcia. Tudo era representado de forma a mostrar seu ângulo ou lado mais claro, da maneira mais completa e objetiva. Os olhos e o tronco eram mostrados de frente. Já o rosto, os braços e as pernas, de perfil.
As figuras ainda traziam junto a elas textos em hieróglifos narrando as cenas. Aliás, os textos e as fórmulas sagradas eram utilizados para decorar e preencher todos os espaços dos templos (figura 10). Isso acontecia porque os egípcios acreditavam que, após a morte, o faraó seria julgado pelos deuses. As imagens nas paredes dos túmulos narravam, muitas vezes, os fatos referentes à vida do faraó. Isso o auxiliaria durante o julgamento.
Os templos ajudariam, também, a manter a energia criadora do faraó. E, nesses casos, os símbolos sagrados deveriam ser corretamente grafados, para garantir que a magia restauradora ocorresse da forma correta, fazendo parte dos rituais religiosos.
Figura 8 – Reprodução em papiro de uma pintura existente na tumba da rainha Nefertari, na qual são levadas oferendas à deusa Ísis — Vale das rainhas, Tebas.
Figura 9 – Relevo em um templo egípcio.
Figura 10 – Interior do templo de Dendera, Egito.
A mesma rigidez encontrada nas pinturas pode ser vista nas esculturas. Elas tinham como principal objetivo mostrar toda a dignidade dos faraós (figura 11), que não eram seres comuns, sendo, portanto, representados como deuses e retratados em toda a sua glória. Ramsés II povoou o Egito, por exemplo, com esculturas como a da figura 11.
Ramsés II reinou no Egito aproximadamente entre os anos de 1.279 a.C. e 1.213 a.C., sendo um período longo, no qual ele reformou diversos templos e mandou construir vários outros. Entre eles, os principais são o Ramesseum, destinado a renovar o seu Ka, e os dois templos de Abu Simbel, no norte da Núbia, sendo um para ele (figura 12) e o outro em homenagem a sua esposa Nefertari. Foi o terceiro faraó da XIX dinastia egípcia, uma das dinastias do Império Novo.
A forma de construção egípcia mais conhecida no mundo são as pirâmides, que eram os túmulos feitos para os faraós. Conta-se que, ao chegar no Egito e se deparar com as grandes pirâmides de Gizé (figura 13), Napoleão Bonaparte disse aos seus soldados: “Do alto dessas pirâmides quarenta séculos vos contemplam”. Isso teria ocorrido em 1798. Desde então, o fascínio pelo Egito nunca mais cessou ou diminuiu. O complexo de Gizé é formado pelas grandes pirâmides dos faraós Quéfren, Quéops e Miquerinos, por uma ampla construção de mastabas, que são os túmulos dos nobres que viveram sob seus governos, e a grande esfinge.
Figura 11 – Estátua colossal de Ramsés II no Templo de Luxor, Egito.
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Figura 12 – Templo de Abu Simbel — Assuã, Egito.
Figura 13 – Esfinge e pirâmide de Quéfren ao fundo — Gizé, Egito.
Mastabas são túmulos particulares destinados aos nobres. Geralmente, elas têm a forma quadrangular e são erguidas sobre a câmara funerária subterrânea. Dentro delas, assim como nas pirâmides, existe uma capela para as oferendas e um cubículo secreto para a estátua do morto.
A primeira pirâmide a ser construída, a de Djoser, em Saqqara (figura 14), data da terceira dinastia, aproximadamente em 2.700 a.C. e foi construída por Imhotep. As pirâmides foram, com o passar do tempo, substituídas por templos funerários que chamassem menos a atenção de ladrões e invasores. Contudo, os estudos geométricos e astronômicos envolvidos nos projetos, assim como as avançadas técnicas de construção, continuaram a deslumbrar aqueles que se interessam por estudar a cultura e a arte egípcias.
Figura 14 – Pirâmide de Djoser — Saqqara, Egito.
Ampliando o foco
Sobre a arte egípcia, ver:
GALVES, M. C. P.; PINHEIRO, A. C. F.; CRIVELARO, M. História da arte e do design: princípios, estilos e manifestações culturais. São Paulo: Érica, 2014, 75-93. Disponível na Minha Biblioteca.